Uma viagem ao passado
- A.C S.M
- 14 de out. de 2024
- 4 min de leitura
Boa noite, queridos livretos e livretas!
Sei que estavam com saudades de uma boa e velha resenha (pelo menos eu estou)
Não sei vocês, mas ficar fora do blog é como tentarem me asfixiar com um pano de prato úmido e usado. Bastante específico, não? Uma loucura, mas é a pura verdade e o que mais faz sentido pra mim.
Hoje trouxe, não uma resenha, mas um longo comentário a respeito de uma obra aclamada da tão prestigiada Octavia E. Butler. Digo comentar porque, cá entre nós, há MUITO o que falar, mas não trabalho com spoilers então, só lendo para entender.
Uma mulher que transborda sua negritude. Me conquistou com sua escrita e visão, me puxando automaticamente para uma época distante, mais sombria.
Confesso que nunca fiz questão de ficção científica, pois bem! Como todo leitor, descobri que não podia estar mais enganada.
Laços de sangue
Dana se encontra perdida numa floresta, mas, estranhamente, podia jurar que estava em cada a menos de dois minutos atrás. Ela vê uma criança se afogando e, rapidamente, não há pensamento impeça de avançar e salvá-la.
O que Dana não sabia, no entanto, era que aquele menininho ruivo era seu descendente. E, naquele fatídico dia, ela "assinou" um contrato que a encarregava de voltar toda vez que o rapaz arrumasse uma encrenca (do tipo que colocasse em risco sua vida, por exemplo)
Esse é uma pequena introdução, para pescarem mais ou menos o que está por vir. Dentro do contexto histórico, a protagonista retorna para a época da escravidão e ela, perdida, fica presa nesse ciclo, indo e voltando. De novo e de novo.
O que é tão bem trabalhado que, em dado momento (lá pra quinta vez em que ela deixou seu lar e caiu em terra), pude sentir as náuseas que ela sentia. Uma aflição grande de acompanhar a impotência de uma pessoa de cor naquelas condições, algo que JAMAIS saberei como é. Jamais sentirei na pele.
A protagonista sabe ler e escrever muito bem, a ponto de a olharem como uma ameaça. Afinal, uma servente que pensa pode contagiar os demais com sua inteligência. Como se os outros fossem incapazes de projetar por conta própria, constantemente subestimados.
Como se não soubessem que viviam como escravos.
Dana vivia plenamente no conforto de sua casa, com seu marido branco (Kevin) algo que não seria bem visto antigamente (algo que ainda não é bem visto) e, mesmo nos tempos modernos, é nos mostrado o preconceito por parte dos familiares do casal. Algo enraizado.
Com o passar dos anos, as pessoas envelheceram e, as ideias, seguiam seu crescimento, sem perder sua essência misoginia. O racismo é algo que ocorre sem controle porque, justamente no passado, fora utilizado para controlar e diminuir os negros. Apenas por serem diferentes.
A narrativa deixa exposto como a vida (vulgo as pessoas) pode degradar alguém, deixá-lo amargo, com desejo de morte. Mostra que a brutalidade não está apenas nas agressões, mas sim nas palavras.
Atemporalidade
Os Weylin eram donos da fazenda, a autoridade. Apesar de Dana sobreviver naquele meio, dentre todos os abusos e açoites, sempre salvava Rufus. De início, mal imaginava que ele era um menininho branco e se perguntava como se casaria com Alice, outra descendente sua, considerando as circunstâncias.
O que me incomodou, mesmo sendo difícil encontrar só uma coisa, mas a que mais me deixou desconfortável, foi vê-la insistir na bondade inexistente do garoto. Era óbvio que, inicialmente, podia plantar ideias na mente dele, construir uma maneira saudável e humanizada de se pensar.
CONTUDO, pelo ambiente hostil e a forma que era tratado (e via o próprio pai destratando) não foi difícil cair em si. Rufe estava condenado a seguir os passos do pai. Pena que demorou longos capítulos (o livro todo) para que Dana enfim entendesse.
Ela tinha esperança, talvez não exatamente essa palavra, mas sentia que os laços que carregavam eram maiores do que qualquer barreira racial. Uma bobeira, pensei, mas não é atoa que pensa assim.
Me pergunto a razão de ter demorado tanto, mas é aí que está. O efeito do livro, o que a obra quer transmitir é que, mesmo querendo fazer algo diferente daquilo, ela não podia. Como preta, não se via em uma posição favorável para tentar realizar qualquer coisa ao contrário daquilo que o capataz ordenava.
Ali, não tinha opinião. Seu livre arbítrio, sua liberdade, tudo aquilo que nasceu com, fora arrancado. Conviver com o peso do cárcere e da não liberdade é um fardo grande, tão grande que poucos fogem, enquanto muitos morrem tentando.
Considerações finais
Octavia me fez perceber isso, me trouxe uma coisa que nunca achei que fosse precisar. A reflexão de tempos em que o homem branco era irracional, sedento por poder, cego pela ganância e com um falso senso de superioridade.
Não vou mentir, foram quatrocentas páginas de puro baque histórico, por isso, se for alguém sensível para o tema, atente-se bem. Essa é uma ficção beirando a triste realidade, uma coisa que queríamos que tivesse acontecido somente dentro das páginas.
Certas horas precisei respirar, me controlar, por mais que a leitura fluísse como um rio de águas claras. As palavras carregam cicatrizes e quase me afoguei nelas.
É surreal parar e analisar o que foi feito com nossos irmãos. O ser humano é o espelho do outro, somos semelhantes nas nossas diferenças e assim nos abraçamos. Tenho esse pensamento, até porque, fui criada assim. Num tempo nem tão justo, mas com mais pessoas justas.
Ele andou na frente além da casa grande, longe dos casebres dos escravos e de outras construções, longe das pequenas crianças escravas que brincavam de pega-pega, gritavam e ainda não entendiam que eram escravas.
Por aqui fico e me despeço, fazendo uma menção honrosa a essa frase que resume a inocência juvenil, presente no meio de tamanha perda.
Recomendo a leitura, mas é para os fortes.
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